Ritual para tornar Negona

  Tudo o que você sempre quis ser negona 

Este ritual foi largado no mundo pela Vicecoisa do Subtreco há alguns meses e produziu duzentas e sete negonas. Enxergue-as. 

1. Comece gritando, encantando.  

 

Uma mulher, uma negra, no mesmo corpo, na mesma imaginação.  Lava, cala, lava, cala, lava direito, cala, lava, você não pensa, você não come, lava os pratos, lava, cala, vira homem,embranquece.vira homem,embranquece.vira homem,embranquece. Há pedaços Há pedaços Há pedaços  Há negonas, há negonas, há negonas Quando estou de barriga vazia, tenho fome, enquanto estou de barriga cheia, tenho medo, quando falo, tenho medo, quando calo, tenho medo, quando lavo, tenho medo – você pode me arrancar da história com algumas mentiras tortas e amargas, você pode me amassar na poeira, minha despreocupação te incomoda? Apenas porque eu ando como se eu tivesse poços de petróleo jorrando na minha sala? Assim como as luas, como os sóis, com a certeza das marés. Assim como as esperanças altas, eu me levanto, eu me levanto, como se houvessem minas de ouro em meu quintal, você pode me destruir com o seu ódio, e eu me levanto, aos pedaços, por pedaços, com pedaços, os pedaços se levantam, e sobram pedaços. Há pedaços.  

2.A experiência do cafuné, o cafuné do conforto – arrume alguém para cafunear. 

Lambiam os lábios e estalavam a língua em carinhosa recordação de dores que tinham suportado – parto, reumatismo, crupe, maus jeitos, dores nas costas, hemorróidas. Todos os machucados que haviam colecionado por se moverem sobre a terra – ceifando, limpando, erguendo, abaixando, ajoelhando, catando – e sempre controlando crianças. Mas tinham sido jovens um dia. O cheiro de suas axilas e de seus quadris mesclara-se em um almíscar agradável; os olhos tinham sido furtivos, os lábios descontraídos, e seu delicado virar de cabeça sobre aqueles delgados pescoços negros assemelhara-se ao de uma gazela. Seu riso tinha sido mais toque do que som. Depois cresceram. Entraram devagar na vida pela porta dos fundos. Transformaram-se. Todo mundo podia lhes dar ordens. As mulheres brancas diziam:  “façam isso”. As crianças brancas diziam “me dá aquilo”. Os homens brancos diziam “venham cá”. Os homens negros diziam “deita”. As únicas pessoas de quem não precisavam receber ordens eram as crianças e as outras mulheres negras. Mas elas pegaram tudo isso e recriaram à sua própria imagem. Administravam a casa dos brancos, e sabiam disso. Aí elas ficavam velhas. O corpo resmungava, o cheiro azedava. Agachadas num canavial, curvadas numa plantação, ajoelhadas na margem de um rio, elas tinham carregado um mundo na cabeça. Não tinham mais nada a ver com sensualidade e lactação, estavam para além das lágrimas e do terror. Tinham idade para ficarem irritadas quando e onde quisessem, e não serem muito molestadas, cansaço suficiente para antever a morte com prazer, desapego suficiente para aceitar a idéia da dor ao mesmo tempo que ignoravam a presença da dor. De fato, finalmente eram livres. E a vida dessas velhas negras era sintetizada em seus olhos – um misto de tragédia e humor, malícia e serenidade, verdade e fantasia.

A mulher negra é assaltada desde os anos mais tenros por todas as forças comuns da natureza ao mesmo tempo em que ela fica presa no fogo cruzado dos preconceitos masculinos, do ódio irracional branco e da falta de poder negro. O fato de que as negras adultas tornam-se personagens formidáveis é freqüentemente tratado com surpresa, desgosto e até beligerância. Raramente é tratado como um resultado inevitável da batalha ganha pelos sobreviventes e que merece respeito senão aceitação entusiástica. Minha mãe tinha duas caras e uma frigideira onde ela cozinhava suas filhas para fazer garotas antes de preparar nosso jantar. Minha mãe tinha duas faces e uma vasilha quebrada onde ela escondia a filha perfeita que não era eu; eu era o sol e a lua e para sempre com fome dos seus olhos. Eu carrego duas mulheres nas costas, uma é escura e rica e escondida nas fomes da outra. Mãe, eu preciso, mãe, eu preciso da tua pretura agora como a terra na primavera precisa da chuva; eu sou o sol e a lua e para sempre com fome a beira afiada onde o dia e a noite se encontram e não são apenas um.

3. Escute os pedaços dentro das tuas mitocôndrias pretonas

Há pedaços, há pedaços. Nós não somos apenas o que nós somos, somos também o que estamos nos tornando, as forças que, de dentro do miolo dos nossos pensamentos, do meandro das nossas intimidades, podem nos levar a ser coisas muito diferentes – se outras forças deixarem. Em vez de falar de branquelos e negonas entre as pessoas, vou falar dos branquelos e negonas dentro das pessoas. Quando uma negona escuta uma mensagem gritada ou cifrada dizendo: vira homem, embranquece, são negonas dentro dela que murcham. Cada respiração dela está em disputa: pode ser uma respiração embranquecida, masculinizada; pode ser uma respiração do Paulo Otávio, pode ser uma respiração da Ana Paula Padrão, pode ser uma respiração de quem lambe os lábios e estalava a língua em carinhosa recordação de dores suportadas, pode ser uma respiração da Pomba Gira. E nem é que a negona vai virar Ana Paula ou incorporar a Pomba, é que ela vai se tornando estas coisas quando ela respira, com o seu próprio nariz, de um jeito ou de outro. Dentro das pessoas há candomblé. Cada pessoa não é um prédio pronto com elevador e garagem, é um terreiro; nas pessoas os santos baixam, baixam nos nossos pedaços, é por isso que temos pedaços: para que os santos dos pedaços baixem.  Há pedaços. Cada pedaço pode embranquecer, pode virar homem. Cada pedaço pode receber um Nero, um Bush, uma Clementina de Jesus. Cada pedaço de um branquelo pode virar negona – e ele, nunca, todo, negona. A ecologia das adaptações, dos contágios, das invasões, das espécies híbridas, das mutações e das misturas não termina nas fronteiras flácidas dos indivíduos. Indivíduos contaminam as negonúculas e branquelúculos dentro de outros indivíduos; negonúculas morando em vários indivíduos podem se unir e  não ter nada a perder, derreter em um forno de malícia e serenidade e atenção e frases de dança os grilhões do medo e respirar como Sara Vaugham. E negonúculas infiltradas dentro dos indivíduos branquelos podem fazer eles olharem para os contornos dos edifícios em um ritmo de samba, escutarem os vizinhos em um compasso de funk e terminar por suspirar como Dona Ivone Lara, andar de Quebra Barraco. Cada palavra está em disputa. Há pedaços. Cada palavra pode ser uma palavra Arruda, pode ser uma palavra Malu Mader ou uma palavra Tati Quebra Barraco. E dentro da Tati, os branquelos, as branquelas, os negões, são multidões. E há pedaços. Sinto as negonas dentro do meu cerebelo murcharem, rodeado de homens brancos que veneram homens brancos mortos – homens brancos fora e dentro do meu terreiro. Meu corpo fica disciplinado de branquitude, de masculinidade, minhas negonas ficam encurraladas, em becos sem saída – e elas são formidáveis, são sobreviventes como todas elas, pedaços das pessoas que conheci, vi, li, escrevi e imaginei que se infiltraram em mim. As negonas tentam tomar conta das minhas palavras, das minhas entrelinhas: escrevo onde não já sou, já sou onde não preciso escrever. Nos terreiros de Candomblé, nas rodas de samba, nos temperos das grande panelas – e eu sou uma mulher temperamental, sou uma mulher cheia de coentro africano, cheia de pimenta, temperamental em fricção com meus pedaços branquelos, temperados, temporizadores –; nesses lugares, elas comparecem, há pedaços, os pedaços generosos e serenos, maliciosos e acolhedores. Naufragam fragmentos de mim sob o poente, mas vou me recompondo com o sol nascente. Solto palavras escritas. Na literatura  existem muitas verdades, nas danças existem frases de dança. Muitas frases de dança verdadeiras. Mas o melhor é poder mentir, inventar. Até descobrirem o mapa do genoma das palavras e dos gestos, a mentira escapa. A literatura é neguinha, a dança é negona. Há pedaços de literatura dentro de cada gesto, há pedaços de dança. Há pedaços. Não são nem nossas medidas (as medidas dos braços, as medidas da paixão, as medidas dos ângulos do movimento dos olhos); elas são arbitrárias. Mas são os ritmos que pulsamos, eles são a partitura do nosso processo de virar coisas diferentes em diferentes circunstâncias – não é o que fazemos sob pressão, mas é o que conseguimos fazer. Já que temos as forças dentro de nós, então podemos encontrar uma circunstância em que elas prevaleçam: Ernesto Melo Antunes, capitão português, indivíduo branquelo, estudando o que pensava o inimigo foi infiltrado por homúnculos do inimigo e terminou por tornar-se o inimigo – dedicou-se a destituir o regime português e fazer uns pedaços da África descolonizados. Há pedaços. Estamos em pedaços. Somos estes pedaços em quebra-cabeça, somos mosaicos sendo recompostos. A recomposição está em disputa: é a dança, é a dança dos pedaços que faço com minhas ancas, meus quartos, minhas cadeiras, meus ombros, minhas negonas, meus peitos, meu tornozelo alheio ao que decidiram as medidas – mesmo que as medidas virem coreografia, a coreografia vire meu movimento natural. Misturada com outros movimentos: inclinar a cabeça e deixar a gargalhada. A gargalhada. Traz felicidade.Há pedaços, porque há pedaços é que não há coisas prontas, nem a ordem da supremacia dos brancos está pronta, nem a ordem da supremacia dos homens está pronta, nem que as mulheres são brancas e os pretos são  homens e nem que algumas negonas sejam corajosas, nem que haja negonas, nem que haja branquelos, nem que haja pedaços. São ensaios. Os pedaços proliferam e eu quero vê-los proliferar; não quero as caras de horizontes emparedados de quem esbarra em assuntos encerrados. Fico querendo que saia o que alguém pôs para que fique depois e não quero prato que fica posto. Quero a batedeira. Quero ser o desfiladeiro. Fábula sem começo, sem tapete, tremedeira. Angel Rhyan, corpo de homem, desejos de mulheres negras lésbicas soube desde cedo que queria ser uma negra lésbica – aos desenove anos se apaixonou por Michelle Parkerson e, depois, só amou negas lésbicas: quando amamos, como quando brincamos de bonecas, podemos querer ser uma boneca ou ser o amante de uma boneca (ou parir uma boneca, bater numa boneca, olhar para uma boneca ao longe etc.). Angel quis ser a negra lésbica, amante de negras lésbicas. Elas diziam a ele: você é a negra lésbica do século – o homem que desvendou o mistério do que é fazer amor com uma mulher. Angel nunca virou negona, mas juntou seus pedaços e colou. Descolou. Colou. Há pedaços. Se você friccionar estas forças bem, é  como uma lâmpada mágica: sai o cigano, sai a judia, sai o arrogante, sai a intrépida. Trata-se de uma alquimia de si – ou então só jardinagem: as mudas que deixamos crescer, as mudas que podamos. Podamos, quem poda? Nós quem, cara pálida? Há pedaços. Em Angel cresceu a negona, lésbica, em Ernesto cresceu o descolonizador, traidor; é preciso ter ouvidos para as vozes inconfidentes, para os sussurros de pé de ouvido das traições, para o descalabro, para o que não tem cabimento. É que não temos cabimento: somos partículas de abundância solta. Cheias de mudas. É da substância do átomo ser partível produtivo ativo e gerador e nos sobra não roê-lo com ninharias, com nossos gestos ratos, nossos pequenos fatos. Não se trata de tragédias e nem de escolhas miudinhas: as negonas são a semente da proliferação. Por isso, Alice Walker dizia que a colonização da África queimava o combustível da inveja. Há pedaços: há proliferação, umas Áfricas dentro de cada terreiro do que somos e há uns navios negreiros. Pule do navio, ele é só feito de pedaços.  

4. Cante algum samba como se tua garganta tivesse sido dominada pela Clementina

 14 de Junho – Está chovendo. Eu não posso ir catar papel. O dia que chove eu sou mendiga. Já ando trapuda e suja. Já uso o uniforme dos indigentes. Enquanto eu esperava na fila para ganhar bolachas ia ouvindo as mulheres lamentar-se. Outra mulher reclamava que passou numa casa e pediu esmola. A dona da casa mandou esperar. A mulher continuou dizendo que a dona da casa surgiu com um embrulho e deu-lhe. Ela não quis abrir o embrulho perto das colegas, com receio que elas pedissem. Começou a pensar. Será um pedaço de queijo? Será carne? Quando ela chegou em casa a primeira coisa que fez foi desfazer o embrulho de curiosidade e fome. Quando desfez o embrulho viu que eram ratos mortos. Na fábrica de bolachas o homem disse que não ia dar mais bolacha. Mas as mulheres continuaram quietas. E a fila estava aumentando. Quando chegava alguém para comprar, ele explicava:– O senhor desculpe o aspecto hediondo que este povo dá na porta da fábrica. Mas por infelicidade minha todos os sábados é este inferno. 16 de junho – Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam:– É pena você ser preta.Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo do negro mais educado do que o cabelo do branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reencarnação, eu quero voltar sempre preta.  

5.

Termine o ritual de tornar-se negona 

Eu nasci do cerne da Negridade

desde entre os músculos particulares da minha mãe

suas águas se abriram sobre o chão florido

e se transformaram em gente no meio de uma noite escura e de lua cheia

minha cabeça se formou redonda como um relógio.

“Você é tão escura”,

minha mãe disse“Eu pensei que você era um menino”.

A primeira vez que eu toquei minha irmã      viva

eu estava certa    que a terra tinha notado,

mas nós não éramos novas

pele falsa descascou como luvas de fogo

em chamas     eu fiquei despida

como a ponta dos meus dedos

sua canção escrita nas minhas palmas,

nas minhas narinas,

na minha barriga

bem-vinda ao lar

em uma linguagem     eu estava contente em reaprender

Mas eu me lembro sem contá-los

os olhosque me cancelaram

como um encontro desagradável

encomenda seladaem amarelo    vermelho    roxo

qualquer corexceto preto    exceto escolha

exceto mulherque está viva.

Eu não lembro as palavras do meu primeiro poema

mas eu lembro a promessa

feita com minha caneta

de nunca deixá-la

largadano sangue de outra pessoa. 

6. sussurre de maneira apócrifa: 

tem coisas das negonas que são escuridão sem medo, de cor sem dívida e nós fingimos que queremos ser brancos como os grandes homens dos cânones que sabem posar de magnânimes e corajosos mas não dançam.

no fundo, há os brancos nas gargalhadas negonas.

mas tomara que não fique muito caro e delicado tentar. 

1 comentário

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Uma resposta para “Ritual para tornar Negona

  1. Marciano

    sou negona

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