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Resenha da Julia Serano pra Deriva

Feminismo, efeminismo e a trans-femininidade

Sobre algumas tramas em “Whipping Girl: A Transsexual  Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity”

Hilan Bensusan

Etiquetas de identidade fazem parte das nossas paisagens: pessoas descabidas encontram conforto e proteção em se alojar em alguma delas, como um escudo contra aquelas outras que se apresentam como compulsórias. Escudos: o livro de Julia Serano começa com uma epígrafe de Audre Lorde – se eu não me definir por mim mesma, diz Lorde, eu vou ser empacotada dentro das fantasias que outras pessoas aprontam para mim e devorada viva. Discursos sobre identidade – versões, subversões, aversões, diversões – são intervenções sobre a política da verdade (e da mentira). É que esses discursos tomam partido acerca dos casos em que a identidade é adotada; ou dos casos em que houve alguma espécie de conversão. A política das identidades: há a política do baculejo, aquela segundo a qual há que haver uma prova, um critério de verdade para cada identidade; há a política do sacolejo de ombros, aquela que considera as identidades sexuais mais ou menos como ilusões que podem (ou devem) ser descartadas. De acordo com a política do baculejo, há um critério em algum manual (talvez a mais recente versão do DSM) para distinguir, por exemplo, uma travesti de uma transexual. De acordo com a política do sacolejo, as identidades nunca falam verdades e podem ser como ferramentas da ordem estabelecida que não podem ser adequadamente usadas para desmontá-la. É a política do baculejo que orienta a maior parte dos procedimentos de acesso a tecnologias de transição sexual. Assim, uma transexual MTF como ela, que Serano prefere chamar de trans-mulher – em oposição às cis-mulheres, que nunca atravessaram o Rubicão da transição – pode ser considerada como tal apenas se for reconhecida por um critério de reconhecimento, o suposto saber de alguma scientia sexualis. Já o sacolejo motiva a descartar – ou por vezes a desconsiderar – algumas preocupações como, por exemplo, se uma trans-mulher passa ou não como mulher em um contexto qualquer. Entre a política do baculejo e a política do sacolejo há a política da adoção. Nem é que a verdade dos discursos sobre identidade depende de uma autoridade constituída e nem é que eles não guardam nenhuma verdade: é que eles passam pelo crivo de quem carrega a identidade. Julia Serano defende que as trans-mulheres deixem de serem vistas desde o ponto de vista de uma matriz cis-nomativa que faz com que elas tenham que se conformar com um critério de femininidade – as mulheres que adotam a identidade de mulheres têm sua própria relação com o feminino (e botaram fé nele, escolheram ele, se converteram a ele).

Uma intervenção sobre as verdades é fazer com que certos enunciados sejam tomados como verdadeiros e outros como falsos – afetar o regime de verdade. A política das verdades gira em torno da maneira como descrevemos e interpretamos o mundo e as pessoas (e como as etiquetamos, se precisamos fazê-lo). Quando um intérprete se depara com as cercanias dos erros – por exemplo, uma palavra que está empregada de uma maneira diferente da que considera habitual ou um corpo que diz ter um gênero diferente daquele que parece – há dois caminhos: o erro pode ser atribuído ao intérprete ou ao interpretado. Pode ser que a palavra tenha sido mal empregada ou pode ser que o interprete não tenha uma hipótese interpretativa adequada para (aquele uso d)aquela palavra. Julia Serano, comentando sobre o discurso acerca de quando transexuais passam (p. 176), diz que quando uma pessoa diz a uma cis-mulher em uma circunstância social: “boa noite, meu senhor”, não dizemos que a cis-mulher não passou ou que sua femininidade está em questão, mas que a pessoa fez um cumprimento equivocado – errado, e muitas vezes inadequado ou deseducado. Onde está o erro – e onde está a verdade – é o território da política da verdade: afetar o regime de verdade que articulação das crenças. Uma intervenção política em favor da política da adoção pode atuar estabelecendo a verdade de que quando os gêneros são confundidos, o erro está do lado do intérprete (dos corpos). Julia Serano defende que a identidade das trans-mulheres pare de ser regida pelas normas cis-sexuais:

o cerne da questão é que palavras como “passar por” são verbos ativos. Assim, quando dizemos que uma pessoa transexual está passando por, isso dá a falsa impressão de que elas são participantes ativas desse cenário. [… ] Eu diria que o reverso é verdadeiro, o público é o participante ativo primário, se é ele público que tenta classificar as pessoas em machos e fêmeas. […E] este papel ativo […] é tornado invisível pelo conceito de “passar por”. (p. 177, tradução minha)

Há uma dimensão de êxito em uma escala de prestígio social incutido na noção de passar por: uma pessoa negra pode passar por branca, um homossexual pode passar por hétero. Frequentemente este êxito é associado a um melindre, a um embuste: é associado a enganar as pessoas – como quem representa um papel diferente do que elas são. Quem passa não é o que diz que é, apenas consegue ter êxito em fingir – o que elas aparentam ou querem aparentar, o que quer que elas escolheram ser, não tem importância nenhuma para o que elas são.

Julia Serano pensa que as trans-mulheres adotaram a femininidade – elas introduzem um novo poder rebelde ao que é feminino, que não é uma condenação para elas, mas é uma adoção.  O feminino tem o poder de ser o anátema da ordem (cis-hetero-)patriarcal; ela diz: as coisas de garotas são o equivalente de gênero da criptonita (p. 315). Serano quer colocar o feminino de volta no feminismo, e as trans-mulheres – femininas por adoção, por compulsão e não por conformidade – são centrais nessa empreitada. Mas trata-se de uma empreitada que tem que ser articulada de um ponto de vista que não seja cis-sexual: ela defende a contribuição das trans-mulheres na conspiração feminista. Não se trata de dissolver as identidades (adotadas) com um sacolejo. Serano conta (p. 217-218) que começou sua transição acreditando que havia uma larga distante entre os pólos masculinos e femininos – e que a transição teria que ser um longo processo. A transição, ela conta, foi em maior medida em um súbito – após um pouco mais de quatro meses de terapia hormonal. Ela teve a impressão de que homens e mulheres eram partes de uma enorme alucinação e que ela estava flutuando já que eram por uns poucos trizes que ela passou a ser considerada e tratada como uma mulher. Essa impressão foi passageira, ela conta (p. 220), e assim foi para muitas de suas trans-amigas. Ela completou a transição, adotou uma identidade trans-feminina; aterrissou. Julia considera a femininidade uma identidade que ela usa para se definir – e não há nenhum traço atômico que corrobore ou dê credenciais a essa identidade.

A misoginia é frequentemente a resposta para o caráter rebelde da femininidade na ordem estabelecida: ela aparece na forma de trans-fobia, na forma de uma repulsa aos cross-dressers e aos pequenos signos femininos no comportamento dos homens. A misoginia aparece também em um certo desprezo de certos movimentos contra identidades sexuais às mulheres que se aninharam em uma identidade trans-feminina. Ela enxerga este desprezo como parte de um movimento em direção a uma hegemonia cis no movimento queer: ela desconfia de um cissexualismo subreptício que se aloja debaixo da pele de muita gente com conforto – um cissexualismo transfóbico e muitas vezes trans-misógino. Sem ser trans, periga o queer se cissexualizar.

Julia Serano compara o movimento queer dos anos 90 ao feminismo cultural dos anos 70. Ela cita Alice Echols (p. 349): o feminismo radical era um movimento de empoderamento contra as amarras do sexismo enquanto o feminismo cultural passou a escolher inimigo. Serano compara então o feminismo radical com o Queer Nation (promovendo beijos coletivos no meio dos shopping centers mais straights) e com o Transexual Menace de Riki Wilchins. Em seguida, ela suspeita, alguns movimento queer deixaram de ser infiltração e passaram a se pautar por nós-vs-eles. Começou a surgir a hegemonia da idéia, com um pé cis-cêntrico, de que aquilo que não é suficientemente anti-binarista não pode ser suficientemente demolidor da ordem oficial. Julia e suas amigas trans-mulheres muitas vezes se sentem desconfortáveis em eventos queer – elas são vistas como conformistas porque abandonaram um estado de indefinições de corpo e gênero (eram homens que se identificavam com um corpo feminino no espelho, eram homens autoginefílicos, eram transgênero em suas performances) para se encaixar no espaço binário de ter um corpo de mulher. É como se não houvesse espaço senão para a inconformidade com a diferença sexual: com a diferença sexual se faz muitas coisas,ignorá-la é uma delas, podemos também retorcê-la, transitá-la, amassá-la, embrulhá-la com um papel anti-cissexual, virá-la de cabeça para baixo. É, de novo, o tema de se a diferença sexual implica heteronormatividade. E Julia Serano diz: em nome disso, o movimento queer pode estar gerando suas próprias Janice Raymonds – aquela feminista lésbica que escreveu um livro acusando as trans-mulheres de serem infiltrações masculinas no movimento. Ou seja, criar um monstro de transfobia cissexista em que uma trans-mulher é acusada, outra vez, de ser invasora, espiã, agente duplo – desta vez respondendo à ordem heteronormativa. Descasque o tomate como você quiser, antibinariedade não é (nem suficiente e nem necessária para garantir) antisexismo.

O perigo é que a contaminação dos desejos seja substituída por uma patrulha em quem não pauta toda a sua vida por um anti-binarismo. Como se a diferença sexual fosse ela mesma o que deve ser combatido. Julia Serano teme que “a cissexualização do transgenerismo teve consequencias devastadoras para a habilidade de transsexuais de articular nossa própria perspectiva do […] ativismo. Ao invés de sermos ouvidas e apreciadas nos nossos próprios termos, nos somos forçadas a aderir a retórica LG e a alguns valores para termos voz na nossa propria comunidade. […] Meu medo é que uma tendência homogenizadora seja a oportunidade perdida de ouvirmos várias vozes e mudar as mentes do público em geral. […] Ninguém tem conhecimento superior quanto a sexo e gênero.” (p. 356-8).  Sublevação pode vir de toda parte – binarismo não é conformismo e nem antibinarismo é já transgressão – já que os corpos estão embrenhados em inteligibilidade. As batalhas da inteligibilidade não podem ser alheias a como as pessoas começam interpretando os corpos; o número 2 faz parte da matriz – e a matriz pode ser arremessada contra a heteronormatividade.  Sublevação dos desejos é vertigem, são olhos tontos, genitálias em queda livre: ela pode vir de toda parte, não há trincheiras, não há exércitos formados e nem adianta fazer fortalezas ao longo de qualquer linha Maginot.

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Julia Serrano, Whipping Girl: A Transsexual  Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity, Berkeley: Seal Press, 2007

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Esquizotrans e a manhã seguinte do queer: subversão não tem dono

A subversão da sexualidade é virótica demais para ser deixada nas mãos de mamutes, hipopótamos, partidos ou movimentos que escolheram seus inimigos. “Esquizo” em esquizotrans é queer, é militância para dissolver a adaga da binariedade sexual – é a parte que insinua que sexismo emerge de normas de comportamento e de formulação de suposição sobre o corpo das outras guiadas pela binariedade. Confundir o que enxergamos como macho, como fêmea. O esquizo é drag, o queer tem um pau feminino, um par de seios de sujeito homem. E esquizotrans é “trans”, desconfia de um cissexualismo subreptício que se aloja debaixo da pele de muita gente com conforto – um cissexualismo transfóbico e muitas vezes trans-misógino. Sem ser trans, periga o queer se cissexualizar.

Julia Serano compara o movimento queer dos anos 90 ao feminismo cultural dos anos 70. Ela cita Alice Echols: o feminismo radical era um movimento de empoderamento contra as amarras do sexismo enquanto o feminismo cultural passou a escolher inimigo. Serano compara então o feminismo radical com o Queer Nation (promovendo beijos coletivos no meio dos shopping centers os mais straights) e com o Transexual Menace de Riki Wilchins. Em seguida, ela suspeita, alguns movimento queer deixaram de ser infiltração e passaram a se pautar por nós-vs-eles. E tudo aquilo que não é suficientemente anti-binarista não pode ser suficientemente subversivo. Julia é MTF e suas amigas transmulheres muitas vezes se sentem desconfortáveis em eventos queer – elas são vistas como conformistas porque abandonaram um estado de queerness (eram homens que se identificavam com um corpo feminino no espelho, eram homens autoginefílicos, eram transgênero em suas performances) para se encaixar no espaço binário de ter um corpo de mulher. É como se não houvesse espaço senão para a inconformidade com a diferença sexual: esquizotrans não quer traçar limites entre corpo e atitude – com a diferença sexual se faz muitas coisas,ignorá-la é uma delas, podemos também retorcê-la, transitá-la, amassá-la, embrulhá-la com um papel anti-cissexual, virá-la de cabeça para baixo. É, de novo, o tema de se a diferença sexual implica heteronormatividade. E Julia Serano diz: em nome disso, o movimento queer pode estar gerando suas próprias Janice Raymonds e Thomas Kandos. Ou seja, criar um monstro de transfobia cissexista em que uma transmulher é acusada, outra vez, de ser invasora, espiã, agente duplo – desta vez nas fileiras da heteronormatividade. Descasque o tomate como você quiser, antibinariedade não é (nem suficiente e nem necessária para garantir) antisexismo.

Queer, por vezes, arreda um milímetro antes da natureza: como se o corpo fosse disforme e dele pudermos fazer o que quisermos – sim, temos genitálias sem órgãos. Contudo, as genitálias podem ser também manipuladas e Kate Bornstein pode ter uma genitália sem órgãos feminina no lugar da masculina – a performance não para na fronteira do corpo, não reconhece matéria prima; qualquer matéria pode pegar e trair sua prima. Julia Serano teme que “a cissexualização do transgenerismo teve consequencias devastadoras para a habilidade de transsexuais de articular nossa própria perspectiva do […] ativismo. Ao invés de sermos ouvidas e apreciadas nos nossos próprios termos, nos somos forçadas a aderir a retórica LG e a alguns valores para termos voz na nossa propria comunidade. […] Meu medo é que uma tendência homogenizadora seja a oportunidade perdida de ouvirmos várias vozes e mudar as mentes do público em geral. […] Ninguém tem conhecimento superior quanto a sexo e gênero.” (The Future of Queer/Trans Activism, in: Whipping Girl: A Transsexual Woman on Sexism and the Scapegoating of Femininity, p. 356-8).  Subversão pode vir de toda parte – binarismo não é conformismo e nem antibinarismo é já subversão – já que os corpos estão embrenhados em inteligibilidade. As batalhas da inteligibilidade não podem ser alheias a como as pessoas começam interpretando os corpos; o número 2 faz parte da matriz – e a matriz pode ser arremessada contra a heteronormatividade.  Subversão dos desejos é vertigem, são olhos tontos, genitálias em queda livre: ela pode vir de toda parte, não há trincheiras, não há exércitos formados e nem adianta fazer fortalezas ao longo de uma linha Maginot.

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