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A tal Elizabeth Costello no FIFI 2009, Rio, semana passada

SANY0147

Entregêneros literais e entregêneros literários: a filosofia e a ficção do triz

Hilan Bensusan

Esta noite eu vou falar do que está por um triz. Ou por dois, ou por três. Qual é o tamanho de um triz? Há em circulação um falômetro para quem acabou de nascer: se o falômetro indica algum número entre um centímetro e dois centímetros e meio, quem nasceu fica a um triz de ganhar roupas azuis e a um triz de ganhar roupas cor-de-rosa. Quando falta um triz, vamos para o limbo – aquele espaço não-sancionado, abjeto e que quase sempre só pode ser visto em alta velocidade. Ficamos do lado de fora das categorias, onde mora o delírio; do lado de fora das montanhas das curvas normais, onde mora o meandro. No meandro se costuram as tramas. Tramas nunca são feitas de um fio só, nunca ficam num Lócus Solus.

Era uma vez um homem, portando paletó e calças forradas. Ele é visto saindo da casa gradeada, ele tranca a porta e sai para a rua – as meninas gritam: é o ladrão. É assim que se veste o ladrão? Que espécie de ladrão é este portando o paletó do respeito – talvez eu devesse procurar algum triz que tirasse do paletó a qualidade do respeito. Nos trancamos dentro de casa – a rua estava aberta a aquele transeunte que infectava, o ladrão. Eu nunca tinha visto o ladrão. Nunca vi o vadio, nem a esposa exemplar e raras vezes a pipoqueira da esquina – ou qualquer dessas pessoas com o destino gravado em bronze. Trancamos as portas, as janelas e só respiramos o nosso próprio ar.

Esta é a ficção do nosso passado: nós conseguimos, ao fazer milhares e milhões de ficções individuais, ficções criadas por seres humanos individuais, grudar uma na outra para parecer um passado comum – um código de endereçamento postal do que já foi passado, com o passado, o presente e o futuro do passado.

Quando alguém nasce, uma matriz de personagens tenta lhe dar cabimento: mesmos os corpos são corpos de personagens, as curvas são curvas normais.

Os limbos são o contrário das identidades. Os limbos são os declives das curvas normais. O triz fica evidente quando olhamos para os rabos das curvas normais, nos rabos das curvas normais vive o áspero, o refugo, o resto – que são temas para os intelectuais delirados por Ana Cristina Chiara. No resto fica uma multidão de não era bem isso. É o que não desliza, o que não passa despercebido, o que salta aos olhos acostumados a um certo andar das categorias. Quantos trizes fazem uma performance? Uma vida? Quantos centímetros, quantos centilitros de hormônio, quantas centenas de palavras? Dizem que os padrões de ativação do córtex são diferentes entre cis-homens e trans-mulheres. Trans-pessoas são aquelas que fizeram uma transição desde sua categoria de sexo de nascença. Cis-pessoas são aquelas que não atravessaram o Rubicão. Os padrões de ativação são padrões. Uma trans-mulher é um caso de ginefilia – ginefilia? Um apego às mulheres, uma fissura pelo que é feminino: como a cliente que quer o bikini igual ao que viu no corpo da modelo, como o cliente que quer a boneca inflável igual ao corpo da modelo, como uma menina vestindo sua boneca, um menino bolinando debaixo da saia da boneca da sua irmã. O desejo é um alvo. É para lá que eu vou. Eu quem? O desejo move as minhas montanhas, me faz deslizar das montanhas por um triz, passar pelo rabo da curva normal. Desejo e acaso – e as tais curvas normais – que poderoso duo para construir um universo. E a ginefilia, dizem as más línguas, fizeram homens construírem civilizações, destruírem civilizações, construírem civilizações. Quanta ginefilia? As vezes a ginefilia é só um amor a Jocasta, por parte da menina que cresce vendo a mãe cortejada ou cravejada da atenção dos homens. A menina poderia querer ser cortejada por eles, mas sentiu por um triz a mais, a ginefilia deles – a heteroginefilia deles. Não quer só ser uma mulher, quer ter uma mulher. O desejo heterossexual dos homens é ginefílico, mas e quem quer levar ao alvo do desejo seu próprio corpo? Genesis P. -Orridge fez da sua vida uma performance da mulher que amava. Como se faz uma performance assim? Operação, injeção, recombinação, saia-balão – a receita está pelas clínicas e pelos teatros mas é encontrada na rua. As transmulheres tem outro padrão de ativação do córtex, talvez não seja em cada caso muito diferente dos cishomens ensandecidos de ginefilia, umas meia-dúzia de trizes. Alguns homens querem ser as mulheres que querem, alguns homens querem ter as mulheres que querem, alguns homens querem ter os seios das mulheres que querem, alguns homens querem ter as pernas das mulheres que querem; as pernas, as ancas, as nádegas, as costas. Alguns querem possuir os ombros, ter aqueles ombros. O desejo se move de triz em triz.

Estrias, ondulações, dobras, onde a passagem é áspera: há quem puxe de um lado, há quem puxe de outro. Quem escreve está no meio desse cabo de guerra. Quem atua está no meio desse cabo de guerra. Há meia-dúzia de trizes de diferença.

Quem escreve tem convicções apenas provisoriamente: convicções fixas atrapalham o caminho. Muda-se de crenças como quem muda de roupa ou de casa, de acordo com as necessidades. Eu posso oferecer uma simulação das convicções, serve?

Minha mão está a disposição: está para ser ocupada. Outras partes de mim estão a disposição: para serem ocupadas. Há diferença entre simular uma mulher em uma mão de homem e cruzar o Rubicão e ter uma mão de transmulher. Há diferença: uma penca de trizes. Há diferença entre simular uma mulher em um corpo de homem e estar preparado para ouvir Hic Rhodus, hic salta. Há diferença: uma medida de autoginefilia. Querer ter em si mesmo uma mulher. Há diferença entre querer ter uma saia e um par de pernas vestido de meia-calça e querer inserir progesterona e estrogênio. Há diferença: algumas ativações no córtex.  Há diferença entre a Mme Bovary na mão de Flaubert e Orlando; há diferença entre o Proust no corpo da Albertine e os padecimentos e euforias de uma transmulher. A diferença? O trânsito entre a simulação e o desejo: o caminho da possessão. Emperra, empurra, impele, impede, vacila. Uma terra de ninguém entre gêneros, uma rachadura. Várias rachaduras, uma paisagem de erosões: entre escrever e fazer uma performance, entre ter um alvo heterossexual e cultivar uma dose mássica de autoheterofilia, entre ser possuído por uma Pomba-Gira, possuir uma Pomba-Gira e querer fazer uma operação para se tornar uma Pomba-Gira. Entre desejo e simulação. Flaubert tomaria umas cápsulas de hormônio, iria até uma bombadeira?  A possessão vagueia por estados abstratos, particulares; por uns estados de disponibilidade.

A disposição para entrar nos lugares proibidos.  Onde há riscos. Para o público e para si mesmo.

E correr o risco, a possessão é fragmentação, é uma força centrífuga, ela espalha, tritura. Há muitas rachaduras na paisagem, é possível estar dos dois lados de muitas delas. O rio Jordão entre quem só finge e quem deseja, quem é cisdesejo e quem é transdesejo. Um rio de riscos. Os trizes de distância entre o literário e o literal. Mais uma vez há um trânsito químico entre o cisliteral e o transliteral. As substâncias que simulam, simulam o desejo.

Cis e trans, depende da posição de alguém no meandro. Qual é o rio que ainda não foi cruzado. Há medidas de autoandrofilia entre as cismulheres. Beatriz Preciado se tornou uma viciada em Testogel porque era viciada em escrever – e queria um certo ímpeto, um certo estilo, uma certa tranversalidade; queria uma velocidade, uma ignorância, uma atenção. Basta estar a alguns trizes de distância da testosterona em gel para que ele, sem ter sabor, sem ter cheiro, sem deixar marcas, se dissolva na pele como um fantasma que atravessa um muro. Entra sem chamar, entra sem fazer barulho – entra pelo contato. A pele é completa passividade para a possessão: não é necessário cheirar a testosterona, nem fumá-la, nem injetá-la. Basta aproximá-la e a pura vizinhança faz com que ela ocupe os vasos sanguínios fazendo uma performance de outros desejo. A testosterona faz uma microperformance pelos canais do sangue, arregimenta, coordena, compõe, faz uns corpúsculos com o que encontra pela vizinhança, enrijece músculos, desativa cuidados, arremessa os braços que movem os braços. E faz escrever – faz a mão fazer esta performance encurvada, entontecida, paralisante. Beatriz Preciado elocubra a farmacopornografia. Não se trata de transsexualizar, ela quer fixar residência no meio do Rubicão: os sexólogos, dizia Haraway, estão perdendo o controle das pipetas do laboratório da scientia sexualis. O testogel foi dedicado aos cishomens; as proliferações, os cromossomiais desejos, os caules, nem é só a paineira que atira coisas brancas pelo ar – a pirataria do testogel livra Beatriz Preciado do infértil da ninharia das bulas.  Quando é que um corpo é deficitário? Não se trata de faltas, sempre falta – faltam palavras, faltam preconceitos com o texto escrito, o gel faz atravessar a rachadura entre a gender bender e a gender hacker. Preciado diz: “a masculinidade e a femininidade são como a depressão ou a esquizofrenia, ficções médicas definidas unicamente de forma retroativa acerca da molécula com que a qual se tratam”. A simulação tem um caminho de trizes para chegar até o desejo. O que faz o testogel, promove o desejo ou simula o desejo? Deve ser devir. Mas muitas mulheres – ortodoxas, cisdoxas – tomam uma dose de testosterona se esfregando em fontes vivas da droga: em peitos, braços, pernas e regos masculinos. Autoandrofilia? Por um triz ou dois estariam em um transtorno de gênero: levo meu corpo até o macho ou levo o macho até meu corpo – hein?

E os trizes podem ser medidos pela exposição ao testogel. Os envelopes do produto vem em uma medida de 5 gramas. Uma grama, outra grama, mais uma grama. O hormônio se espalha pelo corpo, chega aos espaços entre os dedos, chega aos joelhos, chega aos ovários, chega as axilas, chega ao pulso, as mãos, os dedos, as palavras escritas: ela se sente em um fluxo delicioso de forças que sobem com calma, com uma sensação de potência, de liberdade. Não, não esta máscara; não esta cabeça, ela não a quer, mas aquela que ela vai vestir agora, que fica tão bem, que é do seu gosto – uma cabeça com os mesmos traços que a outra, mas mais duras, mais acentuadas. Inútil trocar olhares… Não haverá mais nada a descobrir, tudo será tão claro, tão evidente. É isso que ela deveria ter feito desde o começo, só as condutas fortes inspiram o respeito. As pessoas vão te aceitar como você é, as pessoas se inclinam, dóceis, olhem-me. Sentiu uma lágrima  na ferida, agradável na sua dor, um bom sangue na liberdade. Começou a se levantar. Queria disparar como se este fosse um contrato. Alguma coisa estava errada. Ao se olhar, no caminho do chuveiro, viu a mancha, uma mancha rosa como se uma pequena framboesa ou talvez uma cereja tivesse se chocado contra sua púbis, colorindo com seus sucos de uma raiz inegavelmente vermelha. Deve ser tinta, mas não saía. Mas não podia sustentar a gargalhada. Se pelo menos pudesse sustentá-la por mais do que alguns segundos, contudo – se ela não fosse tão breve e tão amarga. Atravessa estados particulares, as palavras podem sair elegantes, delicadas, mesmo que cruas. E a substância graciosamente se dissolve, se desmancha, as palavras desfalecem, mudam de viço, como se o Sr. Kepesh, de volta do outro lado do rio Jordão, tivesse ido visitar um médico, Dr. Klinger, que dissesse: “hormônios são hormônios, arte é arte”.

Talvez houvesse um tempo em que certos rios ninguém cruzasse, como se os meandros estivessem sempre por um triz, mas um triz mantido a distância.

Eu espero não estar abusando do privilégio desta plataforma para fazer comentários a toa, sobre quem eu sou ou sobre quem vocês são, meus ouvintes. Esta não foi a lição de nada do que eu falei; eu, que, no entanto, não estou em posição de ditar qual foi a lição de nada do que eu falei. Nós acreditamos que havia um tempo em que nós podíamos dizer quem éramos nós. Agora nós somos apenas performers, apresentando nossos papéis. A parte de baixo caiu. Nós poderíamos pensar nesses eventos como sendo trágicos se não fosse tão difícil ter respeito pelo que quer que fosse a parte de baixo que caiu – isso parece a nós como uma ilusão agora, uma dessas ilusões sustentadas apenas pelo olhar concentrado de cada um na sala. Retirem os olhos apenas por um instante e o espelho cai no chão e se desfaz em cacos.

Os gêneros literários, os gêneros literais – e os interstícios entre eles – são cacos de um espelho em que certos trizes parecem intransponíveis. E todos estes banhistas nadando no Rubicão, no Jordão, perambulando pelas rachaduras. Mas os rios não existem antes das margens. Quem chega a margem pode estar a um triz de nadar no rio: e nesse caso as proliferações de gestos e trejeitos saem do controle dos sexólogos, as proliferações de palavras e estilos saem do controle dos estetas – da margem se pula para a marginalia. Eu desejo você. Eu simulo você. Eu possuo você. Eu escrevo de você. Eu performo você… (Eu amo você)  Eu vou fazer alguma coisa com você, já que você me ocupa, me transtorna, me cistorna, minha cisterna – um bueiro, no meandro das ruas, como a rede de esgotos dos meus gestos. Quanto do meu corpo, do meu tempo, do meu ímpeto eu vou entregar a você? A você, quem? Um espelho, eu preciso de um espelho, eu preciso da minha imagem no espelho.

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Beatriz Preciado e as micro-identidades

Ela diz, em Multidões Queer (2003), que a guerra contra a normatização pode envolver postos de identidade, guerrilhas de identidade a partir de lugares de fala que resistem ao império da norma sexual. Ela recomenda uma composição de estratégias hiper-identitárias e pós-identitárias. Trans, mas também esquizo. Ela escreve assim:

<<Identificações negativas como “bolachas” ou “bichas” se converteram em lugares de produção de identidades que resistem à normalização, que desconfiam do poder totalitário, das chamadas à “universalização”. Influenciadas pela crítica pós-colonial, as teorias queer dos anos 90 têm utilizado os enormes recursos políticos da identificação “gueto”, identificações que iriam ter um novo valor político, dado que pela primeira vez os sujeitos do enunciado eram as próprias bolachas, as bichas, os negros e as pessoas transgênero. Àqueles que ventilam a ameaça da guetização, os movimentos e as teorias queer respondem com estratégias ao mesmo tempo hiper-identitárias e pós-identitárias. Fazem um uso radical dos recursos políticos da produção performativa das identidades desviadas. A força de movimentos como Act Up, Lesbian Avengers ou as Radical Fairies deriva de sua capacidade para utilizar suas posições de sujeitos “abjetos” (esses “maus sujeitos” que são os soropositivos, as bolachas, as bichas) para fazer disso lugares de resistência ao ponto de vista “universal”, à história branca, colonial e hétero do “humano”.>>

O texto completo está aqui:

http://www.4shared.com/file/103948018/f28dc85a/MULTIDES_QUEER.html

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